terça-feira, 25 de novembro de 2008

"Ave Nilza cheia de graça..."


Outro dia de faxina...
Nilza chega cedo e me acorda com a campainha (isto porque tive uma noite de sono interrompida pelo vizinho de cima, mais uma vez...). Ela chega e já me sacode com toda a sua presença; com aquela sua voz sonora e ritimada e um sotaque levemente carioca. Ela vem e seu modo animado e peculiar de falar traz uma energia de mudança, transformação... limpeza.
Então, esse espacinho aqui de casa se revoluciona. Fico impressionada com o tanto que ela faz; com a facilidade, rapidez e sutileza com que encontra coisas e coisas pra fazer e "mexer" num lugar tão pequeno. "E esta roupa aqui... Ih, ainda não consertou a máquina de lavar, não é... Olha, eu tirei aqueles seus papéis do cantinho e limpei porque estava juntando muita poeira." (E eu que tinha dito- por pura vergonha- que esse cantinho bagunçado com papéis não precisava limpar...)
Bem, Nilza chega e literalmente algo "acontece". Ela me "acorda"! Dá-me uma "sacodida"!
Sabe o que é ter alguém para te ajudar a cuidar de suas coisas mais íntimas e cotidianas; das suas desorganizações, dos seus desconsertos e "sujeiras". Ela acabou virando parte integrante do meu espaço, da minha vida, da mágica fórmula para o meu equilíbrio interior (e exterior).
Ela atua como uma espécie de bruxa... uma curandeira... Uma "faxineira espiritual" é a Nilza! (E ela que não me ouça dizer isto porque é batista, daquelas que usam saias na altura dos joelhos e cabelos compridos.)
Ela fala!!! Compete comigo "pau a pau" nisto. E eu adoro ouvir ela falar. (Eu até fico calada...) Acabo atrapalhando o ritual da faxina e perguntando coisas para render um assunto ou chamando ela repetidamente para vir tomar café à mesa comigo, para me contagiar com a sua energia poderosa .
Peguei-me pensando que em tão pouco tempo que a conheço, já me sinto bem apegada à sua pessoa. Ela também demonstra o "e vice-versa" disto, quando faz cara triste se eu ainda não tenho o dia certo para marcar "a próxima". Mas ela está mesmo precisando do trabalho; tem família pra criar. O que me contenta é que, às vezes, ela se empolga com nossos papos sobre comida, cozinha e estórias longas de quando começou a trabalhar em "casa de madame" e eu é que tenho que mandá-la embora para ela não perder a festa da igreja, para qual ensaiou o mês inteiro e fez até uniforme.
Tenho vontade de rir quando imagino que ela possa falar de mim assim, do mesmo jeito que fala de outra "patroa" - forma como ela gosta de tratar as "donas" das casas nas quais ela trabalha ou já trabalhou. Já posso até"escutar" os seus comentários, quando ouço ela me chamar de "Dona Maria". (E "dona" é uma escolha tão dela que não adianta eu tentar mudar. Tenho que respeitar.)
Nilza ama o que faz e tem orgulho disso. Ela brilha os olhos ao falar que o doutor gostou muito mais do seu gnochi que o da outra cozinheira da casa; fica prosa com os elogios da outra patroa ao embelezamento que dá em suas saladas e ressalta os conselhos que dá à irmã, sobre com qual frequência limpar os vidros das janelas. Ela explicando como gosta de decorar a salada, fazendo florzinhas com (como é mesmo que chama aquilo...) é bom demais de ouvir.
Não gosto muito da idéia de ter alguém para cuidar do trabalho de casa enquanto eu fico com os pés para cima e as mãos abanando; além do fato de a grana estar meio curta para isso. Só chamava bem de vez em quando, em épocas de aperto, quando não dava mais para aguentar. (Minha relação com as empregadas domésticas e faxineiras que trabalharam em minha família eram muito misturadas com amizade, afeto.... causando ciúmes`a minha mãe; e isto era um tanto problemático).
Sinto, porém, que não chamar a Nilza agora, pelo menos uma vez ao mês, é não ajudá-la a sustentar sua família e deixar de compartilhar meu lar com ela. Aqui também já é seu espaço; um pequeno espaço que nós duas cuidamos - cada uma à seu modo.
Como disse a ela da última vez que esteve aqui: "Acho que a casa estava com saudades de você!"
Acho que esse lar precisa mesmo da Nilza e de sua presença sempre cheia de graça!
Amém. (Que assim seja.)
Menina MA

4 comentários:

Fernanda Fiuza disse...

nossa lembrei daquela moça que trabalhava pra vcs no ipiranga, como era mesmo o nome dela??? ela bricava de "casinha" com a gente...rsrsrsr

bjs!

Menina MA disse...

Ih, já não sei qual delas... A Irene, talvez. Ela gostava dos Polegares. Meu Deus! Quanto tempo faz isto!
beijo Fernanda

Flávia Pires disse...

Menina MA fala das relações entre domésticas e filhos/filhas de patroas que parecem bem típicas das relações sociais brasileiras. Será que isto tem raízes da Casa Grande, que como Gilberto Freyre fala, estava sempre cheia de escravos domésticos e seus filhos? E da relação amorosa entre a ama de leite e o senhorzinho, do ciúmes da senhora branca do mulher negra escrava com o senhor branco... Enfim.
Mas eu queria era contar um caso que me aconteceu. Um francês em minha casa ficou surpreso com o fato de que a empregada doméstica, aqui chamada de "secretária" ( - porque não chamamos os negros de negros, as empregadas de empregadas?), sentar-se à mesa do almoço junto com a família. Ele perguntou: mas quando você vai ao restaurante você chama o cozinheiro para sentar com você? É a mesma relação: você paga para alguém cozinhar para você.
Esse hábito, motivo de orgulho para a minha família, olhado de um ponto de vista estrangeiro, parece menos sujeito a qualquer forma de aprovação, me lembra mais as relações cruéis de sujeitação emocional da Casa Grande.... lembra o desenho do Debret? A negra abanando a senhora, o menino negro brincando no chão e mesa farta posta para o deleite dos senhores.
Temos dificuldade de dar nomes aos bois, assumir nosso preconceito, assumir nossa sociedade altamente hieraquizada, cada macaco no seu galho, preto, branco, pobre, rico, sem misturas. Tanto medo e tanta covardia que vamos inventando formas de relação perversas como a Casa Grande, a democracia racial, as favelas, o rei disso o rei daquilo... mas por que não assumimos logo a nossa condição de súditos?

Menina MA disse...

Quando escrevi este post e reli, sabia que poderia dar margem a vários outros comentários, interpretações... mesmo assim, quis arriscar abrir o coração e "rasgar o verbo" ou a "taioba", como se diz lá em Minas. Pois bem, é para isto que se serve a escrita ("se serve" mesmo, não foi erro de concordância). Isto é bom para desanuviarmos as idéias, dando um melhor acabamento a "obra", como bem nos ensina um grande filósofo da linguagem, Bakhtin.

Li também "Casa Grande e Senzala" e estudei algum tanto de relações raciais no Brasil e em outros lugares do mundo; refleti também sobre a tão proclamada "democracia racial" que escamoteia muito bem o lugar de cada um nesse nosso "lugar" maior, chamado país. Há uma hierarquia sim, forte, que quase ninguém quer de fato mexer porque quase todo mundo "acha" que vivemos bem assim, tão "felizes" por tudo poder se misturar e ao mesmo tempo ficar em seu devido lugar, quando o "samba" parar de tocar.
Porém, há algo de bem mais complexo nisso tudo. Pensar esta nossa realidade é mesmo algo muito mais complexo e inacabado, como Morin poderia dizer; tão mais além vão todas essas relações, valores, poderes e afetos...
Há tanta subversão e sutileza escondidas também dentro da riqueza deste "cotidiano"; do vivido no dia a dia da atualidade e do passado, neste país. Há também um certo hibridismo nas formas de existir que é fruto de toda esta confluência cultural e conjuntural; que faz surgir concepções inovadoras ou pelo menos pouco conformadas (mesmo que num movimento micro, penso eu). Não tem como ser simples ou usar uma lógica compartimentada nestes assuntos, quando eles dizem respeito também ao nosso mundo pessoal; não tem como ser politicamente correto porque soa, e seria, falso. Hà sim, afetos, valores e concepções sendo criadas, questionadas e redimensionadas - sempre houve, acredito eu - porém, nunca numa dimensão tão revolucionária (pelo menos não, neste nosso país).

Mas, resumindo e voltando ao cerne da questão inicial, não deixo de ser a "patroa" da Nilza (eu é que pago pelo trabalho contratado com ela... mesmo estando no vermelho) e também não deixo de gostar da companhia dela à mesa, somente porque gosto de bater papo com ela e construímos uma certa empatia recíproca - por que não... (Não me sentindo, porém, mais bacana ou "cordial" por isto; não mesmo! Acho somente uma sorte poder não me sentir separada dela por um abismo infinito por nossa diferença social e esta convivência ser de alguma forma muito enriquecedora).
A diferença é que tendo alguma consciência disso tudo que foi dito acima; vivo no Brasil de hoje... num país aonde ainda reina a desigualdade, o desemprego e a pobreza... o subemprego, a exploração de mão de obra e a miséria. E sabendo (hoje) que não posso mudar tudo e inverter qualquer ordem neste país e quiça no mundo, sozinha... descubro (dentro desta solidão) que posso começar também a subverter algo no meu mundo interior; seja no mundo do meu conjugado, da minha mente ou do meu coração.rs
E realmente não sei se há racismo ou "sujeição emocional"
melhor... Se seria o "à francesa" (mais frio e impessoal, talvez) ou o "à brasileira"(afetivo e caloroso até demais). Todos eles, na minha opinião, são péssimos "pratos" para se servir, quentes ou frios.